REsp 1377084: Autonomia da vontade na concorrência sucessória e sua aplicação no Tribunal de Justiça
O paradigmático Recurso Especial 1377084 de relatoria da ministra Nancy Andrighi (hoje Corregedora Nacional de Justiça), causou um certo alvoroço quando de sua publicação. Relembremos a ementa:
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INVENTÁRIO. CÔNJUGE SUPÉRSTITE CASADO COM O DE CUJUS PELO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. HERANÇA COMPOSTA DE BENS PARTICULARES E BEM COMUM. HERDEIRO NECESSÁRIO. CONCORRÊNCIA COM OS DESCENDENTES. ARTS. ANALISADOS: 1.658, 1.659, 1.661, E 1.829, I, DO CC⁄02.
1. Inventário distribuído em 24⁄01⁄2006, do qual foi extraído o presente recurso especial, concluso ao Gabinete em 27⁄05⁄2013.
2. Cinge-se a controvérsia a definir se o cônjuge supérstite, casado com o falecido pelo regime da comunhão parcial de bens, concorre com os descendentes dele na partilha dos bens particulares.
3. No regime da comunhão parcial, os bens exclusivos de um cônjuge não são partilhados com o outro no divórcio e, pela mesma razão, não o devem ser após a sua morte, sob pena de infringir o que ficou acordado entre os nubentes no momento em que decidiram se unir em matrimônio. Acaso a vontade deles seja a de compartilhar todo o seu patrimônio, a partir do casamento, assim devem instituir em pacto antenupcial.
4. O fato de o cônjuge não concorrer com os descendentes na partilha dos bens particulares do de cujus não exclui a possibilidade de qualquer dos consortes, em vida, dispor desses bens por testamento, desde que respeitada a legítima, reservando-os ou parte deles ao sobrevivente, a fim de resguardá-lo acaso venha a antes dele falecer.
5. Se o espírito das mudanças operadas no CC⁄02 foi evitar que um cônjuge fique ao desamparo com a morte do outro, essa celeuma não se resolve simplesmente atribuindo-lhe participação na partilha apenas dos bens particulares, quando houver, porque podem eles ser insignificantes, se comparados aos bens comuns existentes e amealhados durante toda a vida conjugal.
6. Mais justo e consentâneo com a preocupação do legislador é permitir que o sobrevivente herde, em concorrência com os descendentes, a parte do patrimônio que ele próprio construiu com o falecido, não lhe tocando qualquer fração daqueloutros bens que, no exercício da autonomia da vontade, optou – seja por não ter elegido regime diverso do legal, seja pela celebração do pacto antenupcial – por manter incomunicáveis, excluindo-os expressamente da comunhão. 7. Recurso especial conhecido em parte e parcialmente provido.
Tal alvoroço geralmente ocorre quando o entendimento da "Doutrina Majoritária" não é acolhido em decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça. Isso porque o Direito aplicado acaba por definir uma interpretação distinta daquela proposta nos manuais de código civil(confundindo advogados e estudantes de Direito) - não importando que tal decisão confira um maior senso de Justiça para com os anseios da Sociedade. Iniciaram-se, imediatamente, os brados de "ativismo judicial", "judicialização do legislativo" e assim vai... Mesmo considerando que o problema foi causado justamente pelo Poder Legislativo ao brindar o ordenamento jurídico com dispositivos legais incompreensíveis - sejam por sua redação confusa, sejam pela dúvida quanto à sua finalidade.
O inciso I do art. 1829 do Código Civil há de ser o exemplo maior de tal situação, especialmente no que diz respeito à sucessão do cônjuge casado pela comunhão parcial de bens:
Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares
Quanto à essa parte final, interessa também destacar o entendimento da jurista Maria Berenice Dias, que atentamente observou a existência de um sinal de pontuação que pode conferir leitura diferenciada daquela adotada pela corrente majoritária:
Um sinal de pontuação tem tumultuado o direito sucessório, no que diz concorrência sucessória, de quem casou pelo regime da comunhão parcial de bens. Talvez a novidade do instituto, talvez a difícil redação do inc. I do art. 1829 do Código Civil não têm permitido a ninguém atentar para um fato notório: existe um pontoevírgula no artigo dividindo as hipóteses que afastam o direito à concorrência do cônjuge com os filhos a depender do regime de bens do casamento.
A apressada leitura desse dispositivo tem levado todos que buscam na lei uma resposta justa, a um estado de verdadeira perplexidade e de certa indignação, ao flagrarem uma aparente injustiça quando há filhos do autor da herança e existem bens anteriores ao casamento.(http://mariaberenice.com.br/uploads/1_-_ponto_e_v%EDrgula.pdf)
Enfim, seja qual for a maneira de se ler tal dispositivo, o fato é que o instituto da concorrência sucessória do cônjuge sobrevivente com descendentes, apresentado ao ordenamento pátrio em 2002, talvez seja a maior inovação dentre as várias inseridas no Direito das Sucessões donovo Código Civil. E, com certeza, não se trata de inovações que facilitaram a operacionalização do Direito nessa seara... Muito pelo contrário. Vale relembrar algumas palavras do Jurista Silvio Salvo Venosa quanto ao tema:
Em matéria de direito hereditário do cônjuge e também do companheiro, o Código Civil Brasileiro de 2002 representa verdadeira tragédia, um desprestígio e um desrespeito para nosso meio jurídico e para a sociedade, tamanhas são as impropriedades que desembocam em perplexidades interpretativas. Melhor seria que fosse, nesse aspecto, totalmente reescrito e que fosse apagado o que foi feito, como uma mancha na cultura jurídica nacional. É incrível que pessoas presumivelmente cultas como os legisladores pudessem praticar tamanhas falhas estruturais no texto legal. Mas o mal está feito e a lei está vigente. Que apliquem de forma mais justa nos nossos tribunais!"(VENOSA, Silvio Salvo. Direito civil: direito das sucessões / Silvio Salvo Venosa - 5. Ed. - São Paulo: Atlas, 2005. (Coleção Direito civil; v.7). P. 143.)
Nesse sentido, importa ressaltar que, à despeito de toda confusão gerada pelo dispositivo em comento, o brilhantismo da decisão da Ministra Nancy Andrighi advém:
Do fato de acomodar a concorrência sucessória do cônjuge sobrevivente de modo a permitir uma análise sistemática do Codex (em harmonia com as regras que definem os regimes de bens);
Adequar-se à realidade de uma Sociedade na qual o casamento não é mais entendido como uma união indissolúvel (casos de segundos, terceiros, quartos, etc., casamentos são cada vez mais frequentes), o que por si só já prejudica psicologicamente em muito os descendentes, principalmente em se tratando de menores de idade. E, do ponto de vista patrimonial, a opção por conferir maior proteção ao cônjuge sobrevivente e permitir quota dos bens particulares à este (segundo a"Doutrina Majoritária") - que já é garantido por meação, quando assim deseja ser - acabou por se revelar uma afronta ao Principio da Vedação do Retrocesso Social quanto aos direitos dos descendentes, esses sim, herdeiros de primeira classe, e;
Por fim, equipara a base da incidência da sucessão do cônjuge casado em comunhão parcial com aquela do companheiro, permitindo assim a isonomia de tratamento patrimonial nessa questão pontual entre ambos - tanto no que concerne o Direito de Família quanto no que concerne o Direito de Sucessões.
Passados praticamente dois anos e meio da referida decisão (pouco tempo considerando-se o ritmo do Judiciário), o Tribunal Paulista parece não haver hesitado em adotá-la para defini-la como a melhor interpretação das regras de sucessão do regime legal e mais amplamente utilizado no país, conforme se verifica abaixo:
2262656-53.2015.8.26.0000 Relator: Paulo Alcides Comarca:Brodowski Órgão julgador: 6ª Câmara Direito Privado Data do julgamento: 02/06/2016 Data de registro: 02/06/2016Ementa: Inventário. Ausência da procuração outorgada à patrona da agravada. Inexistência de prejuízo processual. Tempestiva apresentação de resposta ao recurso. Agravada que, outrossim, não comprovou, de forma contundente, o descumprimento do disposto no art. 526 do CPC pela Agravante. Preliminares arguidas em sede de contraminuta rejeitadas. Sucessão. Cônjuge supérstite, casado sob o regime da comunhão parcial de bens. Interpretação literal do artigo 1.829, Inciso I, do Código Civil que viola o Princípio da Autonomia da Vontade dos Nubentes. Precedente do Egrégio Superior de Justiça e desta C. 6ª Câmara de Direito Privado. Decisão Reformada. Recurso Provido.
2252765-08.2015.8.26.0000 Relator (a): Mary Grün Comarca: Botucatu Órgão julgador: 7ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 30/03/2016 Data de registro:30/03/2016. Ementa: Agravo de Instrumento – Inventário –– Sucessão do cônjuge supérstite casado no regime da comunhão parcial de bens – Há filhos apenas do autor da herança, bens comuns e bens particulares - A interpretação literal do art. 1829, I, do CC(concorrência do cônjuge com os descendentes nos bens particulares) viola o princípio da autonomia da vontade dos nubentes, que optaram por manter a incomunicabilidade dos bens – O caso concreto não deixa dúvida sobre isso (Os bens particulares foram adquiridos muito antes do casamento, que teve breve duração, 1 ano e 9 meses) – Direito real de habitação não pode ser oposto a terceiros coproprietários do imóvel - Precedentes do e. STJ – Dá-se parcial provimento ao recurso.
2141849-04.2015.8.26.0000 Relator (a): Donegá Morandini. Comarca: São Paulo Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 15/09/2015 Data de registro:16/09/2015. Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. Direitos sucessórios do cônjuge supérstite. Casamento regulado pelo regime de comunhão parcial de bens. Incidência do artigo 1.829, inciso I, do Código Civil. Interpretação sistemática do regime sucessório com a regulação patrimonial das relações afetivas. Concorrência da viúva com os descendentes que se limita aos bens comuns do casal, adquiridos sob o manto da colaboração mútua, não incidindo sobre os bens particulares, sob pena de violação ao princípio da autonomia da vontade. Precedentes desta Corte e do Superior Tribunal de Justiça. DECISÃO REFORMADA. AGRAVO PROVIDO.
2173198-59.2014.8.26.0000 Relator (a): Silvério da Silva Comarca: Praia Grande Órgão julgador: 8ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 19/06/2015 Data de registro: 22/06/2015 Ementa: Agravo de Instrumento. Inventário. Decisão que deferiu a habilitação do viúvo casado em comunhão parcial de bens no inventário em concorrência com os filhos herdeiros, advindos de união anterior. Ausência de filhos herdeiros em comum com o viúvo supérstite. Direito da falecida a bem advindo de sucessão, ante a morte de seu pai. Cônjuge supérstite que não concorre com os herdeiros nesse bem. Aplicação do inciso I do art. 1.829 do CC e do princípio da autonomia da vontade dos nubentes. Jurisprudência. Recurso provido.
2187205-56.2014.8.26.0000 Relator (a): Alvaro Passos Comarca:Bauru Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 14/05/2015 Data de registro: 14/05/2015Ementa: INVENTÁRIO – Bem adquirido em condomínio com a atual esposa, em momento anterior ao casamento – Regime de comunhão parcial de bens – Concorrência da cônjuge sobrevivente com as demais herdeiras – Descabimento Inteligência do art .1829, I, do Código Civil– Decisão reformada – Recurso provido.
2051437-27.2015.8.26.0000 Relator (a): Percival NogueiraComarca: São Paulo Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 11/05/2015 Data de registro: 11/05/2015 Ementa: INVENTÁRIO – Sucessão da cônjuge supérstite, casada sob o regime da comunhão parcial de bens – O 'de cujus' recebeu o bem antes do segundo casamento, de sua primeira esposa – Cônjuge-supérstite que não concorre com os descendentes nesse bem particular – Interpretação literal do artigo 1829, inciso I doCódigo Civil, no que se refere a concorrência do cônjuge com os descendentes nos bens particulares, viola o principio da autonomia da vontade dos nubentes, que escolheram por manter a incomunicabilidade de certos bens, ao optarem pelo regime da comunhão parcial de bens – Precedentes do STJ – Decisão reformada – Recurso provido.
2036161-53.2015.8.26.0000 Relator (a): Alvaro Passos Comarca:São José dos Campos Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 14/04/2015 Data de registro:16/04/2015 Ementa: INVENTÁRIO Bem particular deixado pelo"de cujus"- Regime de comunhão parcial de bens Concorrência da cônjuge sobrevivente com os demais herdeiros Descabimento Inteligência do art. 1829 do Código Civil Violação do princípio da autonomia Recurso improvido.
2051437-27.2015.8.26.0000 Relator (a): Giffoni Ferreira Comarca: São José dos Campos Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 31/03/2015 Data de registro: 02/04/2015 Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO - INVENTÁRIO – CASAMENTO SOB O REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS – CÔNJUGE SUPÉRSTITE NÃO CONCORRE COM OS DESCENDENTES NA PARTILHA DOS BENS PARTICULARES DA FALECIDA – HERANÇA CABÍVEL APENAS NA PARTE DO PATRIMÔNIO COMUM – DECISÃO REFORMADA – AGRAVO PROVIDO.
2036161-53.2015.8.26.0000 Relator (a): Neves Amorim Comarca: São Paulo Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 10/03/2015 Data de registro: 13/03/2015 Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO. RETIFICAÇÃO DAS ÚLTIMAS DECLARAÇÕES. DESNECESSIDADE. O CÔNJUGE SUPÉRSTITE, CASADO NO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS, NÃO CONCORRE COM DESCENDENTES QUANTO AOS BENS PARTICULARES DEIXADOS PELO DE CUJUS, SOB PENA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE. ATUAL ENTENDIMENTO DO STJ. DECISÃO REFORMADA. RECURSO PROVIDO.
2093266-22.2014.8.26.0000 Relator (a): Mary Grün Comarca: Araçatuba Órgão julgador: 7ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 28/11/2014 Data de registro: 28/11/2014 Ementa: Agravo de Instrumento Inventário Sucessão do cônjuge supérstite casado no regime da comunhão parcial de bens Há filhos do primeiro e do segundo casamento - O inventariado recebeu, antes do segundo casamento, certo imóvel de herança de seu pai O cônjuge supérstite não concorre com os descendentes nesse bem particular - A interpretação literal do art. 1829, I, do CC (concorrência do cônjuge com os descendentes nos bens particulares) viola o princípio da autonomia da vontade dos nubentes, que optaram por manter a incomunicabilidade de certos bens (poderiam eles ter casado pelo regime da comunhão universal, mas não o fizeram) Precedente do e. STJ Dá-se provimento ao recurso.
2067490-54.2013.8.26.0000 Relator (a): Giffoni Ferreira Comarca: Guarulhos Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Privado Data do julgamento: 25/02/2014 Data de registro: 28/02/2014 Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO - INVENTÁRIO – CÔNJUGE CASADA SOB O REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL DE BENS NÃO CONCORRE COM OS DESCENDENTES NA PARTILHA DOS BENS PARTICULARES DO DE CUJUS – HERANÇA CABÍVEL APENAS NA PARTE DO PATRIMÔNIO COMUM – DECISÃO REFORMADA – AGRAVO PROVIDO.
Aparentemente, pelo menos no Tribunal Bandeirante, a Justiça está presenteando a sociedade com decisões que se alinham aos anseios da população e ao senso comum. Mas isso não exime o Poder Legislativo de reparar o mal feito. O Projeto de Lei de número 508/07 proposto pelo IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, foi desarquivado em Fevereiro de 2015 e se propõe justamente à tratar por definitivo dessas questões de tamanha relevância.
O cerne da proposta é justamente equiparar o tratamento hereditário do cônjuge e do companheiro, com a inclusão de ambos na redação do artigo 1829 que versa sobre a vocação hereditária e concorrência sucessória, além de apresentar uma clara definição quanto à base de incidência da sucessão de ambos (bens comuns) no parágrafo único do dispositivo.
A proposta também prevê a retirada de ambos os conviventes do rol de herdeiros necessários do art. 1845, com intuito de garantir que, numa sociedade cada vez mais materialista e de relacionamentos efêmeros, as uniões se deem exclusivamente por amor - o que obviamente não exclui a faculdade de um consorte beneficiar o outro através de testamento ou doação em vida.
Enquanto isso, àqueles que se preocupam com essa hipertrofia dos direitos sucessórios do cônjuge supérstite frente aos direitos sucessórios dos descendentes (sucessores por excelência e primeiros elencados na ordem de vocação hereditária), resta confiar que a iniciativa da jurisprudência paulista influencie as demais cortes estaduais do país.